20111015

Gonçalo is speaking # 15

   Ele encontrava-se coberto até meio da barriga pelos lençóis e ambos os braços estavam por cima deles. Estava tão magro que o corpo dele emanava 'fraqueza' por todo o lado. A sua cabeça brilhava, não era possível ver um único fio de cabelo e as suas sobrancelhas eram igualmente inexistentes. Estava ligado a milhões de máquinas e a Carolina tentava desviar sempre a sua atenção delas e apenas focar-se no homem que se encontrava no meio de tudo aquilo. Aquela imagem toda tinha-me perturbado e eu procurava uma distracção, precisava de uma. Pensar que uma vida, um ser humano, uma boa pessoa, possa desaparecer do nada até a mim me transtorna, é muito fodido. E ainda nos perguntamos porquê que coisas destas acontecessem. Podíamos ouvir milhões de respostas e outras mil opiniões mas ainda assim não justificava tal coisa. Dentro de um mês, pensa-se, a vida deste homem ser-lhe-á roubada. Ele não teve escolha, não pediu por isto e muito menos o merecia. Tratava-se apenas de mais uma vítima, não há outro nome. Carlos tinha um estilo de vida saudável, este cancro do pulmão veio apenas por azar. Tinha uma casa numa quinta e só ia à cidade mais perto para fazer compras. Ele gostava da vida que levava, calma, pacífica e tranquila. À uns anos atrás a sua mulher, Vitória, morreu ainda nova, apenas com os seus 31 anos, deixando-o sozinho com uma vida a enfrentar, um negócio a gerir e sem filhos para cuidar.
   A Carolina contou-me que era um dia de inverno como outro qualquer, estavam atarefados como de costume e os pedidos de entrega de cereais continuavam a aumentar. Acabara de nevar por todo o país, as temperaturas desceram significativamente o que era raro acontecer. Enquanto preenchia e organizava a papelada receberam mais um pedido ao último da hora, como sempre. A essa hora a Vitória já andava na rua a fazer as entregas, ligou-lhe e explicou-lhe que teria que ir a mais uma morada. Foi a última conversa que tiveram. Fico fodido por dentro só de pensar se me acontecesse algo deste género e ficasse sem a Carolina.
   Já se tinham passado três horas e Vitória ainda estava no bloco operatório, o Carlos ainda não podia acreditar no que tinha acabado de acontecer. Lembra-se de estar no hospital, sentado numa cadeira com ambas as mãos a esconderem a cara embora não conseguisse fazer com que as lágrimas parassem. Lembra-se também de estar a pensar nela e o que ainda teria para viver ao seu lado, muito triste, não era possível tirarem-na dele desse jeito. Aconteceu tudo muito depressa, pelo o que lhe contaram. Nesse dia o piso das estradas estavam escorregadios e pairava no ar um nevoeiro espesso, foi tudo uma questão de segundos. O culpado do acidente de carro parecia estar a morrer aos pedaços ao seu lado e por muito que ele estivesse preocupado, imenso, Carlos não conseguia olhar para ele sem pensar se o ia matar ou então se lhe ia dar só uns quantos murros na cara. Nisto, o médico apareceu, exausto e cabisbaixo. A notícia não foi fácil de reter visto que a reacção de Carlos foi sentar-se na cadeira a gritar e a chorar. É mesmo muito injusto.
   Eles foram felizes e mesmo quando Vitória morreu o Carlos relembrou-a sempre como uma das melhores fases da vida dele. Ela fora cremada e ele queria esse destino para si mesmo também, ambas cinzas irão ser lançadas no enorme jardim da sua quinta. Isso fazia lembrar a Carolina o quão real isto era e o quão próximo estava de acontecer.
   Durante o tempo que lá estivemos ele apenas acordou três vezes e ficou acordado cerca de quinze minutos, nem isso. Já era noite quando fomos embora e a Carolina chorava, queria confortá-la com um abraço mas visto que ela estava sentada do banco da frente do carro ao lado da sua mãe, que conduzia pacientemente, era-me impossível. Mal chegámos a casa dela eu despedi-me das duas e fui-me embora, não sem antes dar um grande e longo abraço à Carolina, que ainda chorava. Embora não tenhamos trocado quaisquer palavras senti-a mais reconfortada. No caminho para casa ia chutando as pedras que ia encontrando pelo caminho e a pensar em tudo o que tinha acontecido. Quando cheguei a casa cumprimentei a minha mãe com um abraço demorado, ao qual ela me retribuiu passado um bocado, estava surpresa com a minha atitude.
       G.:'Vou-me deitar, boa noite.'
   Atirei-me para cama e depois de um dia destes nunca imaginei que fosse tão difícil adormecer.
   No dia seguinte, mal abri os olhos não era difícil perceber que já era tarde e tinha dormido demais. Eram onze e meia e mal peguei no telemóvel tinha três chamadas não atendidas da Carolina, que merda. Ainda não tínhamos falado desde o pequeno acontecimento na casa de banho dela no dia anterior. Apressei-me em ligar-lhe.
       C.:'Que é feito de ti?'
       G.:'Adormeci mais uma vez... Chego aí em meia hora!'
       C.:'Arrasta já esse grande rabo para aqui!' - sorriu e eu também.
   Levantei-me da cama num salto e fui ligar o chuveiro, escolhi a roupa ao calhas e tomei um banho a correr. Passei apenas os dedos pelo cabelo molhado numa tentativa de o pentear e calcei os meus ténis. Ao ir para casa dela quase que corria, quando cheguei à porta toquei várias vezes à campainha mas ninguém vinha à porta, estranho. Saquei do telemóvel e no preciso momento que ia a marcar o número da Carolina uma mãos taparam-me os olhos. A minha reacção foi colocar as minhas mãos por cima, apercebi-me logo de quem eram.
       G.:'Quem és?' - sorri pela situação ridícula.
       C.:'Vais ter de adivinhar.' - ouvi uma gargalhada.
       G.:'Acabaste por te denunciar.'
   As minhas mãos agarraram as dela, afastei-as da minha cara o que me possibilitou de virar e torcer-lhe os braços. Ela fitou-me quase como assustada e eu sorri. Assim, trouxe-a até mim e abracei-a sussurrando-lhe ao ouvido.
       G.:'Bom dia'
   Senti no meu ombro que ela esboçou um largo e rasgado sorriso, os braços dela começaram a desistir do abraço e eu fiz o mesmo. Ainda me sentia um pouco constrangido e envergonhado mas hoje ela estava linda e sentia-me com vontade de me aproximar dela. Deixara o cabelo solto, cada caracol moldava-lhe o rosto e caíam-lhe ao longo do pescoço até não muito depois dos ombros. Os olhos eram diferentes e podia jurar que agora estavam mais claros. A pele dela estava bronzeada o que não era difícil naquela altura do ano e embora parecesse bem e com melhor cara ela trespassava uma certa inquietação. Abriu a porta de casa com um empurrão e entrámos os dois, segui-a até à cozinha e sentei-me numa cadeira enquanto ela tirava as compras da saca de plástico do supermercado.


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