20131006

Gonçalo is speaking # 20

[Carolina]
   Passaram-se exactamente 21 dias desde a última vez que ouvi a sua voz - contar as horas em cada um deles tem sido o meu passatempo favorito - e a última lembrança que tenho dele é o beijo que me depositou na testa antes de partir para o mar. Parece que tinha desaparecido, até mesmo quando se encontrava ao alcance dos meus olhos, naquela cama e naquele ambiente mórbido. 
       C.:'Já nada tem sido o mesmo, sabes? Torna-se tão frustrante não conseguir tirar de ti palavras e gestos de que tanto preciso... Só consigo manter-me calma quando estes vêm de ti. - ia dizendo já com voz trémula - Aconteceu tudo tão depressa como se tivesse ficado sem chão, sempre precisei do teu apoio desde que fomos surpreendidos pela doença do meu tio e como as coisas têm corrido acho que muito em breve vou perdê-lo, é injusto amar-mos tanto uma pessoa e termos de esperar que a vida dela acabe sem podermos fazer nada. Mas tal como ele pensei que por instantes também te tinha perdido a ti...'
   A voz tinha falhado no final, fiquei à espera de alguma reacção como o habitual, à espera daquela palavra de consolo, à espera da mão dele no meu ombro. Com toda aquela estranha sensação a preencher-me a garganta afectando a minha voz não tardou até sentir os olhos carregados de lágrimas que começaram a palpitar umas atrás das outras sem controlo, apenas era tudo tão insuportável. Levei rapidamente as mãos aos olhos para que me pudesse recompor antes que alguém entrasse no quarto. Ele mantinha a mesma expressão calma e tranquila como se nada de mal tivesse acontecido em seu redor, mal sabia ele que a dor e o sofrimento pairavam naquele quarto todos os dias.
   Depois de lhe contar sobre o meu dia com o Carlos e de devorar o jantar que a sua mãe me tinha trazido, olhava novamente para ele, desejando que tudo passasse rapidamente para que um dia pudéssemos falar sobre isso sem que a tristeza estivesse envolvida, apenas memórias de uma má experiência, só faltava ele acordar. E se ele não se lembrasse de mim? Estive vários dias a pensar nessa possibilidade remota, mas não muito, afinal tudo o que importava era ele acordar, era ele viver realmente. Mas deparando-me com essa situação de haver sequer a chance de quando abrir os olhos não reconhecer quem esteve todos os dias presente ao seu lado deixa-me ainda mais nervosa e tensa. Até que ponto é que os golpes que sofreu na cabeça influenciariam a sua vida? Tenho de parar de matutar nisto. 
   Eram agora 12h57 da noite, a minha mãe já tinha ligado e reconfortei-a mencionado que tinha jantado bem, aliás, a mãe do Gonçalo certificou-se disso quando se ia embora para tratar de papelada lá em casa, já precisava de um bom descanso. Estava a dar uma maratona de filmes num canal televisivo e foi dessa maneira que passei maior parte do tempo naquele quarto de hospital. Sentada na cadeira a seu lado com a minha mão na sua por cima dos lençóis brancos, lembrava-me do dia em que o convidei a ir lá a casa ver um filme comigo, o dia em que ele me ia beijar pela primeira vez. Mas agora, com ele em coma e eu sentindo-me nostálgica, fingi que ambos estávamos concentrados na comédia que passava no ecrã da caixa preta ao canto do quarto. Sempre que me ria apertava-lhe a mão e mal os meus olhos se fixavam na cara dele a situação tornava-se pesarosa... estava sozinha, não havia como remediar isso. Quando o filme acabou decidi rapidamente desligar a TV, já se fazia tarde e a minha cama improvisada num sofá de dois lugares pareceu-me bastante aconchegante para que eu pudesse descansar depois de um longo dia, pensei que iria custar mas bastou pôr-me numa posição confortável para cair no sono profundo.
   Uma voz conhecida começou a chamar pelo pelo meu nome e, por estranho que parecesse, tranquilizava-me - 'Carolina...', ouvia eu num sussurro e deixava-me levar pelo sonho onde o via todas as noites. Encontrava-o sempre lá à minha espera, chamando por mim e eu tentava sempre alcançá-lo. 'Deixa-me tocar-te!' gritava eu, mas ele continuava longe. 'Gonçalo não te vás! não me deixes sozinha!', ele limitava-se a sorrir para mim com o olhar cheio de ternura e aí eu ouvi ao longe 'Continuo contigo, não fui a lado nenhum', as minhas pernas esforçaram-se ainda mais para poder chegar-lhe mas sempre sem sucesso. Deixei-me cair e segurei o rosto para não me deixar chorar embora as lágrimas já tivessem escapado para as minhas mãos. Não me permiti olhar mais para ele ainda que continuasse a ouvir o meu nome a ecoar à minha volta e a ouvir aquela voz, tinha tantas saudades...
       X.:'Carolina..!'
   Acordei e eram 4h da manhã, a escuridão era tal que não conseguia encontrar o maldito interruptor do candeeiro - raios! disse eu após bater com um pé no móvel, sentido-o a latejar, mas mal o encontrei acendi a luz e os meus olhos encontram-se com os dele, abertos, fixos em mim. Senti que as lágrimas corriam pelo meu rosto desde o momento em que tinha acordado, não foi um sonho, ele tinha chamado por mim. Apressei-me a responder sem assimilar tudo o que se estava a passar. 
       C.:'Sim?'
   Ele respirou fundo tentando recuperar as forças para falar.
       G.:'Eu amo-te.'

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