[Carolina]
Mal fechei a porta de casa atrás de mim comecei a rir-me para o nada. Caramba, o dia não podia ter corrido
melhor! O meu ego transformou-se rapidamente numa Galdéria Embeiçada e ela não
hesitou em lançar um punho no ar tal e qual o Freddy Mercury, a vida corria-nos
bem. Esta parte de mim tão cedo não ia desaparecer, não enquanto o Gonçalo me
olhasse daquela maneira e me deixasse sem ar. Aqueles lábios a dizer que me
querem ver novamente, uma gaja não tem que aguentar uma coisa destas, certo? A Galdéria
Embeiçada era egoísta o suficiente para ficar para o bem das suas necessidades,
eu até gostava dela menos quando se manifestava à frente dele. As minhas pernas
vibrantes e as faces rosadas denunciavam-me, oh céus, o quão ela gostava disso. O Gonçalo enchia-a de mimos.
- Mãe? – Gritei eu mas não obtive resposta, estranho, ela já deveria
estar por casa. – Mããããe?!
Entrei na cozinha, nada. Subi ao primeiro andar dirigindo-me aos quartos
mas também estavam vazios. No jardim a mesma coisa. Decidi ligar-lhe e uma
sensação terrível atravessou-me o peito. Ainda não falei com o meu tio hoje.
Tirei o telemóvel do bolso e marquei o número dela, atendeu ao terceiro toque.
- Estou?
- Mãe!
- Sim, Carolina? – Perguntou,
mas não notei nada de estranho na sua voz.
- Está tudo bem? – Respondi
com outra pergunta, mas tinha medo da resposta que viria a seguir.
- Sim filha, porquê?
- Não estás em casa, pensei
que se tivesse passado alguma coisa – disse eu já mais aliviada. – Ainda
demoras?
- Vim às compras, não temos nada para comer.
Entrei agora mesmo no carro para ir para casa - ouviu-se um estrondo através do
auscultador, provavelmente foi a porta do carro.
- Então vejo-te daqui a
pouco.
- Vá filha, até já!
- Até já, mamã – sim, eu
chamava-a mamã.
Subi as escadas para o meu quarto e
dirigi-me à aparelhagem. Ia tomar banho e adorava fazê-lo ao ouvir música, logo
num dia destes. Mas não podia mesmo esquecer-me de ligar ao meu tio depois do
banho, tinha que tirar esta sensação do peito para o dia acabar na perfeição.
Mal a música começou a dar um sorriso invadiu-me o rosto e sentia-me a rapariga
mais feliz do mundo. Entrei no chuveiro logo após a água ficar morna e comecei
a analisar o dia todo desde que acordei. Sentia-me relaxada ao sentir os jatos
a atingir-me a pele enquanto revia o motivo da minha felicidade. O Gonçalo
sentia-se cada vez mais à vontade ao pé de mim, até eu me tenho apercebido e
achava que o meu desconforto era o gatilho que desencadeava isso. Nunca fui boa
a pensar em situações como as de hoje, mas ele tira-me o fôlego com respostas
daquelas sem parecer sequer afetado. Apesar da Galdéria Embeiçada se sentir maravilhada
com tanta atenção eu não sei se me sinto da mesma forma. Tudo bem, eu gosto do
rapaz - demasiado até -mas ficava aparvalhada com as intervenções dele e
acabava por fazer figura de idiota. Odiava-o por isso, porque ele sabia. Tirei
o champô do cabelo e a espuma do corpo, abri a porta do chuveiro e enrolei-me
numa toalha. Quando acabei de me secar desembaciei o espelho com ela e
estiquei-a no chão como um tapete para proteger os meus pés do chão frio.
Olhei-me no espelho, claramente tinha melhor aspeto que há uns largos dias
atrás. Sentia-me bonita, especialmente depois da dose de atenção óbvia que
recebi. De repente ouvi a porta da entrada de casa a fechar-se e imaginei que
fosse a minha mãe. Vesti-me, arranjei o cabelo, arrumei a casa de banho e desci
as escadas para ir ter com ela. Encontrei-a a arrumar as compras nas
prateleiras da despensa. Até ela tinha melhor aspeto apesar de ter o cabelo
preso num carrapito desajeitado e as suas roupas estarem um pouco
desengonçadas. Este era o aspeto exato de uma pessoa atarefada e de facto ela
era uma.
- Finalmente chegaste –
recebi-a com um sorriso.
- Desde quando sentes tanto a
minha falta? – Ela perguntou e senti gozo no tom da sua voz.
- Até parece! – Disse com voz
afetada.
- Diz lá o que queres.
- Ok, agora estás mesmo a
ofender-me!
- Estou a brincar, como foi o
teu dia?
- Normal – Maravilhoso por acaso, o melhor da minha
vida! Até a Galdéria Embeiçada não conteve as risadinhas e os guinchinhos. Tentei
mesmo parecer natural quando o disse, mas mães são mães…
- Sabes que podes dizer a
verdade – disse ela com um sorriso na cara.
- Posso ter dezoito anos mas
ainda não posso contar-te tudo o que vai na minha alma sombria cheia de
hormonas – e que descontroladas que estas hormonas andavam. A Galdéria
Embeiçada mandou um beijo para o ar, se havia alguém que percebia de
descontrolo era ela.
- Ganhaste, não posso
argumentar contra isso – disse entre gargalhadas. – Como é que ele está?
- Está a aguentar-se, não
pode sair de casa ainda mas está com melhor aspeto.
- Isso é bom, ao menos ele
está a recuperar bem.
- Bem, não queria dizer isto
maaaas… eu ajudo bastante – ri-me.
- Para estares assim ele
também te está a ajudar – disse ela num tom bastante divertido.
- Enganas-te, ele cansa-me o
cérebro, é por isso que não consigo ser normal.
- Então prefiro que sejas
anormal, ao menos vejo-te feliz – disse ela e eu soube que fora bastante
sincera.
Semicerrei os olhos, não sabia que ela se
sentia assim em relação a mim.
- Ok, é a minha vez, o que queres de mim? – Perguntei
e ela desmanchou-se em gargalhadas.
- Já chega de brincadeiras,
vou fazer o jantar.
- Oh, e eu a pensar que te
tinhas tornado divertida.
Saí da cozinha no meio dos nossos risos e
decidi ligar ao meu tio. Já se estava a fazer um pouco tarde e queria que ele
descansasse. Havia sempre a probabilidade de ser a empregada a atender mas
mesmo assim ia ficar mais descansada.
- Estou sim? – Perguntei eu quando
atenderam.
- Carolina, és tu? – A voz
dele era inconfundível.
- Sim tio, sou eu – respondi
e o peso todo que sentia no peito desvaneceu.
- Como estás? Hoje não
passaste por cá – notava-se o esforço que fazia para falar.
- Estou sempre bem tio. Fui
visitar o meu amigo que teve o acidente no mar.
- Ah sim, o Gonçalo, como é
que ele está? – Admirava-me que ainda se lembrasse do nome dele.
- Esta a recuperar, ainda não
pode sair de casa, mas está com melhor cara pelo menos.
- Fico muito contente por
ele! – Disse ele e eu sei que o tinha dito de coração.
- E tu? Como estás?
- Eu estou na mesma – tossiu.
– Pensava que era hoje que me ias dar descanso – soltou uma gargalhada rouca.
- Sabes que adoro chatear-te
a cabeça – sorri.
Estivemos a falar mais um pouco mas não me
alonguei na conversa, ele precisava de descanso e já estava a fazer um esforço
enorme ao falar comigo. Despedi-me com um “Adoro-te” e ele igual. Agora o dia
podia finalmente acabar.
:::
Mal o despertador tocou acordei em uníssono
com a Galdéria Embeiçada. Ela já se estava a arranjar em frente ao espelho e eu
mal tinha saído da cama. Esperava que o dia de hoje fosse tão bom como o de
ontem, já que melhor não podia ser. Quando toquei à campainha da porta do Gonçalo
senti novamente o meu estômago a embrulhar-se e ele ainda não tinha aparecido, que raios! Olhei interiormente para a
Galdéria e lá estava ela, pronta a arrasar novamente. Odeio-a neste momento.
Mal o Gonçalo abriu a porta as pernas tremeram-me e tive que a esbofetear
mentalmente para que eu não caísse ao chão.
- Olá – disse com um enorme sorriso.
- Olá – disse eu, claramente
ainda atrapalhada com os meus pensamentos.
O Gonçalo veio cá para fora e pôs-se ao meu
lado para fechar a porta desajeitadamente. Não íamos ficar por casa? Ele
apercebeu-se da incógnita estampada na minha cara e sorriu novamente.
- Decidi fazer-te uma surpresa – pausou. –
Ontem era o meu último dia de repouso, já posso aventurar-me – disse ele
bastante orgulhoso de si.
- Até onde as tuas muletas te
deixarem – completei gargalhando.
- Não desafies um homem orgulhoso.
- Acabei de o fazer –
semicerrei os olhos. Ia definitivamente jogar este jogo e a Galdéria estava a
adorar.
- Estou a ver que andaste a
treinar a tua confiança no espelho – sorriu. – Mas ainda não estás preparada
para todos os meus trunfos, acredita em mim – passou a mão pelo meu queixo
roçando o seu polegar no meu lábio inferior e piscou-me o olho preparando-se
para descer os poucos degraus da sua entrada.
A minha boca assumiu a forma de um “O” perfeito e no meu interior alguém tinha acabado de desmaiar, mais uma vez ele tinha ficado com a última palavra.
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