20140422

Gonçalo is speaking # 24

[Carolina]

   Mal fechei a porta de casa atrás de mim comecei a rir-me para o nada. Caramba, o dia não podia ter corrido melhor! O meu ego transformou-se rapidamente numa Galdéria Embeiçada e ela não hesitou em lançar um punho no ar tal e qual o Freddy Mercury, a vida corria-nos bem. Esta parte de mim tão cedo não ia desaparecer, não enquanto o Gonçalo me olhasse daquela maneira e me deixasse sem ar. Aqueles lábios a dizer que me querem ver novamente, uma gaja não tem que aguentar uma coisa destas, certo? A Galdéria Embeiçada era egoísta o suficiente para ficar para o bem das suas necessidades, eu até gostava dela menos quando se manifestava à frente dele. As minhas pernas vibrantes e as faces rosadas denunciavam-me, oh céus, o quão ela gostava disso. O Gonçalo enchia-a de mimos.

   - Mãe? – Gritei eu mas não obtive resposta, estranho, ela já deveria estar por casa. – Mããããe?!
   Entrei na cozinha, nada. Subi ao primeiro andar dirigindo-me aos quartos mas também estavam vazios. No jardim a mesma coisa. Decidi ligar-lhe e uma sensação terrível atravessou-me o peito. Ainda não falei com o meu tio hoje. Tirei o telemóvel do bolso e marquei o número dela, atendeu ao terceiro toque.
   - Estou?
   - Mãe!
   - Sim, Carolina? – Perguntou, mas não notei nada de estranho na sua voz.
   - Está tudo bem? – Respondi com outra pergunta, mas tinha medo da resposta que viria a seguir.
   - Sim filha, porquê?
   - Não estás em casa, pensei que se tivesse passado alguma coisa – disse eu já mais aliviada. – Ainda demoras?
   - Vim às compras, não temos nada para comer. Entrei agora mesmo no carro para ir para casa - ouviu-se um estrondo através do auscultador, provavelmente foi a porta do carro.
   - Então vejo-te daqui a pouco.
   - Vá filha, até já!
   - Até já, mamã – sim, eu chamava-a mamã.
   Subi as escadas para o meu quarto e dirigi-me à aparelhagem. Ia tomar banho e adorava fazê-lo ao ouvir música, logo num dia destes. Mas não podia mesmo esquecer-me de ligar ao meu tio depois do banho, tinha que tirar esta sensação do peito para o dia acabar na perfeição. Mal a música começou a dar um sorriso invadiu-me o rosto e sentia-me a rapariga mais feliz do mundo. Entrei no chuveiro logo após a água ficar morna e comecei a analisar o dia todo desde que acordei. Sentia-me relaxada ao sentir os jatos a atingir-me a pele enquanto revia o motivo da minha felicidade. O Gonçalo sentia-se cada vez mais à vontade ao pé de mim, até eu me tenho apercebido e achava que o meu desconforto era o gatilho que desencadeava isso. Nunca fui boa a pensar em situações como as de hoje, mas ele tira-me o fôlego com respostas daquelas sem parecer sequer afetado. Apesar da Galdéria Embeiçada se sentir maravilhada com tanta atenção eu não sei se me sinto da mesma forma. Tudo bem, eu gosto do rapaz - demasiado até -mas ficava aparvalhada com as intervenções dele e acabava por fazer figura de idiota. Odiava-o por isso, porque ele sabia. Tirei o champô do cabelo e a espuma do corpo, abri a porta do chuveiro e enrolei-me numa toalha. Quando acabei de me secar desembaciei o espelho com ela e estiquei-a no chão como um tapete para proteger os meus pés do chão frio. Olhei-me no espelho, claramente tinha melhor aspeto que há uns largos dias atrás. Sentia-me bonita, especialmente depois da dose de atenção óbvia que recebi. De repente ouvi a porta da entrada de casa a fechar-se e imaginei que fosse a minha mãe. Vesti-me, arranjei o cabelo, arrumei a casa de banho e desci as escadas para ir ter com ela. Encontrei-a a arrumar as compras nas prateleiras da despensa. Até ela tinha melhor aspeto apesar de ter o cabelo preso num carrapito desajeitado e as suas roupas estarem um pouco desengonçadas. Este era o aspeto exato de uma pessoa atarefada e de facto ela era uma.
   
    - Finalmente chegaste – recebi-a com um sorriso.
   - Desde quando sentes tanto a minha falta? – Ela perguntou e senti gozo no tom da sua voz.
   - Até parece! – Disse com voz afetada.
   - Diz lá o que queres.
   - Ok, agora estás mesmo a ofender-me!
   - Estou a brincar, como foi o teu dia?
   - Normal – Maravilhoso por acaso, o melhor da minha vida! Até a Galdéria Embeiçada não conteve as risadinhas e os guinchinhos. Tentei mesmo parecer natural quando o disse, mas mães são mães…
   - Sabes que podes dizer a verdade – disse ela com um sorriso na cara.
   - Posso ter dezoito anos mas ainda não posso contar-te tudo o que vai na minha alma sombria cheia de hormonas – e que descontroladas que estas hormonas andavam. A Galdéria Embeiçada mandou um beijo para o ar, se havia alguém que percebia de descontrolo era ela.
   - Ganhaste, não posso argumentar contra isso – disse entre gargalhadas. – Como é que ele está?
   - Está a aguentar-se, não pode sair de casa ainda mas está com melhor aspeto.
   - Isso é bom, ao menos ele está a recuperar bem.
   - Bem, não queria dizer isto maaaas… eu ajudo bastante – ri-me.
   - Para estares assim ele também te está a ajudar – disse ela num tom bastante divertido.
   - Enganas-te, ele cansa-me o cérebro, é por isso que não consigo ser normal.
   - Então prefiro que sejas anormal, ao menos vejo-te feliz – disse ela e eu soube que fora bastante sincera.
   Semicerrei os olhos, não sabia que ela se sentia assim em relação a mim.
   - Ok, é a minha vez, o que queres de mim? – Perguntei e ela desmanchou-se em gargalhadas.
   - Já chega de brincadeiras, vou fazer o jantar.
   - Oh, e eu a pensar que te tinhas tornado divertida.
   Saí da cozinha no meio dos nossos risos e decidi ligar ao meu tio. Já se estava a fazer um pouco tarde e queria que ele descansasse. Havia sempre a probabilidade de ser a empregada a atender mas mesmo assim ia ficar mais descansada.
   - Estou sim? – Perguntei eu quando atenderam.
   - Carolina, és tu? – A voz dele era inconfundível.
   - Sim tio, sou eu – respondi e o peso todo que sentia no peito desvaneceu.
   - Como estás? Hoje não passaste por cá – notava-se o esforço que fazia para falar.
   - Estou sempre bem tio. Fui visitar o meu amigo que teve o acidente no mar.
   - Ah sim, o Gonçalo, como é que ele está? – Admirava-me que ainda se lembrasse do nome dele.
   - Esta a recuperar, ainda não pode sair de casa, mas está com melhor cara pelo menos.
   - Fico muito contente por ele! – Disse ele e eu sei que o tinha dito de coração.
   - E tu? Como estás?
   - Eu estou na mesma – tossiu. – Pensava que era hoje que me ias dar descanso – soltou uma gargalhada rouca.
   - Sabes que adoro chatear-te a cabeça – sorri.
   Estivemos a falar mais um pouco mas não me alonguei na conversa, ele precisava de descanso e já estava a fazer um esforço enorme ao falar comigo. Despedi-me com um “Adoro-te” e ele igual. Agora o dia podia finalmente acabar.
:::
   Mal o despertador tocou acordei em uníssono com a Galdéria Embeiçada. Ela já se estava a arranjar em frente ao espelho e eu mal tinha saído da cama. Esperava que o dia de hoje fosse tão bom como o de ontem, já que melhor não podia ser. Quando toquei à campainha da porta do Gonçalo senti novamente o meu estômago a embrulhar-se e ele ainda não tinha aparecido, que raios! Olhei interiormente para a Galdéria e lá estava ela, pronta a arrasar novamente. Odeio-a neste momento. Mal o Gonçalo abriu a porta as pernas tremeram-me e tive que a esbofetear mentalmente para que eu não caísse ao chão.
   - Olá – disse com um enorme sorriso.
   - Olá – disse eu, claramente ainda atrapalhada com os meus pensamentos.
   O Gonçalo veio cá para fora e pôs-se ao meu lado para fechar a porta desajeitadamente. Não íamos ficar por casa? Ele apercebeu-se da incógnita estampada na minha cara e sorriu novamente.
   - Decidi fazer-te uma surpresa – pausou. – Ontem era o meu último dia de repouso, já posso aventurar-me – disse ele bastante orgulhoso de si.
   - Até onde as tuas muletas te deixarem – completei gargalhando.
   - Não desafies um homem orgulhoso.
   - Acabei de o fazer – semicerrei os olhos. Ia definitivamente jogar este jogo e a Galdéria estava a adorar.
   - Estou a ver que andaste a treinar a tua confiança no espelho – sorriu. – Mas ainda não estás preparada para todos os meus trunfos, acredita em mim – passou a mão pelo meu queixo roçando o seu polegar no meu lábio inferior e piscou-me o olho preparando-se para descer os poucos degraus da sua entrada.

   A minha boca assumiu a forma de um “O” perfeito e no meu interior alguém tinha acabado de desmaiar, mais uma vez ele tinha ficado com a última palavra. 




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