20140413

Gonçalo is speaking # 23

[Carolina]
       "Desculpa, só não estou habituada" - disse ainda mais embaraçada que ele.
   Odiava quando ele me lia os pensamentos. O Gonçalo acabou por rasgar um sorriso e eu retribuí com um abraço, mas desta vez com cuidado, para não o magoar. A casa estava silenciosa o que me fez perceber que estávamos apenas nós dois, nós dois e as pizzas, ou melhor, os restos de pizza que se encontravam em cima de uma pequena mesa na sala. 
        "Ninguém diria que acabaste de sair do hospital."
       "Não me julgues, se tivesses ficado lá o tempo que eu fiquei a comer canja enlatada também fazias o mesmo." ele riu.
   Não pude reprimir a gargalhada, com ele era impossível, saía naturalmente. Apesar de ser a milésima vez que estava com ele ainda me sentia ansiosa. Estava habituada a passar os dias com ele, mas na verdade ele não podia reagir nem ouvir o que eu dizia. Decidi sentar-me no sofá e não pensar demasiado, tinha a certeza que ele se ia aperceber do quão nervosa eu estava se insistisse neste assunto. Ele começou a sentar-se ao meu lado, mas com dificuldade.
       "Queres ajuda?" - ignorou-me - "Queres?" - de novo.
   Apoiava-se nas muletas e ia deixando-se cair para trás de rabo empinado, se a situação fosse outra tinha desatado a rir. Pus a mão na minha bochecha e comecei a beliscar-me sem ele reparar, não queria sequer esboçar um sorriso após tanta determinação da parte dele em sentar-se sozinho. Finalmente, com um gesto brusco, entrou em contacto com o sofá.
       "Estás bem?" perguntei e um pouco de gozo misturou-se no tom da minha voz.
       "Yup, tudo controlado." - pigarreou.
   Não queria mesmo entrar por aí, não sei se me ia controlar. As mãos dele começaram a viajar pelo sofá, imaginei que fosse à procura do comando. Olhei para os lados e lá estava ele, no meio da almofada e do braço do sofá. Quando os olhos dele se encontraram com o simples objecto que agora se encontrava na minha mão esboçou um sorriso.
         "Obrigado." disse já mais descontraído.
   Ao contrário de mim que ainda me sentia nervosa, levei as mãos aos meus joelhos, sentia-me numa posição desconfortável.
         "Sabes que te podes pôr à vontade, certo?"
   Hunf, mais uma vez leu-me os pensamentos. Odiava sentir-me como se fosse um livro aberto. Que mais conseguia ele ver através de mim?
     "Qual é o programa para o dia de hoje?" - vês? Consegues fazer conversa de circunstância.
       "Pensava que por esta altura já me podia aventurar e sair de casa mas vamos ter que ficar aqui enfiados." - o desânimo instalou-se-lhe na cara.
       "Tudo bem, sempre temos o jardim." 
       "Carolina," - disse com uma voz afectada - "estarás mesmo a gozar comigo?" - notei-lhe o desafio presente na voz.
       "Pela primeira vez tenho a certeza que te posso ganhar." - gargalhei.
      "Então não te esqueças que posso sempre vingar-me depois" - os seus olhos penetraram os meus, reparei que estavam um pouco mais escuros que o habitual. Não conseguia ler o que ele estaria a pensar, como é que ele o faz comigo? A expressão dele era completamente neutra e ficamos assim apenas por alguns segundos, mas podia jurar que foram uns longos dez minutos. Apercebi-me que me tinha esquecido de respirar e fomos interrompidos pelo meu enorme suspiro, boa... Mas nem assim ele desviou o olhar de mim.
       "Hoje podemos ver uns filmes ou algo do género, tudo bem por ti?", o que eu dava para beijar aqueles lábios. "Carolina?" ele chama-me, claramente mais alto.
      "Sim, eu ouvi", merda! Aposto que já estava a corar. "Por mim tudo bem", disse sinceramente.
   Ele sorriu, de certeza que se apercebeu. As traseiras da casa do Gonçalo continham um grande jardim, com uma espécie de pequeno coberto num canto que abrigava uma mesa e cadeiras em seu redor. Tinha também uma cama de rede e algumas árvores que faziam sombra em dias de calor como este. No verão era costume também montarem uma piscina e fazerem grandes churrascadas, tenho algumas fotos desses dias. Decidi então que ao almoço iria fazer uma refeição em condições visto que ele não tinha posto nada no estômago a não ser comida de plástico. Pus a mesa no jardim e de seguida dirigi-me à dispensa para escolher os ingredientes necessários. Ia fazer bifinhos de peru com cogumelos e arroz a acompanhar, uma das minhas especialidades. Enquanto tratava da comida junto ao fogão ouvi um barulho de algo a bater no chão que provinha da sala. Apercebi-me do que ele estava a tentar fazer.
       "Espero seriamente que não estejas a tentar levantar-te!", gritei para a outra divisão. 
       "Quero ajudar-te!", recebi em troca.
       "Acredita que no estado em que estás só me ias empatar!", ouvi uma gargalhada.
       "É justo, mas só desta vez.", finalmente desistiu.
    Na cozinha pairava um cheiro delicioso, mal podia esperar para comer, já estava quase a acabar. Finalmente, desliguei o fogão e levei tudo para fora, mal coloquei na mesa fui ter com o Gonçalo à sala. 
       "Já está pronto", informei "queres ajuda para te levantar?", mais uma vez o meu apelo foi ignorado.
   Tentava debater-se com as muletas e com a melhor posição para sentir menos dor, decidi ajudá-lo mesmo que não mo tivesse pedido. Coloquei os meus braços em redor ao seu tronco mesmo abaixo dos braços dele e puxei-o para a frente para que se levantasse. Ficamos frente a frente e sem que estivesse a contar ele depositou-me um beijo breve na bochecha. Inclinei a cabeça para o conseguir olhar e sorri, ele era lindo mesmo com todas as nódoas negras e ligaduras. 
   Cá fora o tempo estava óptimo, mesmo estando cobertos do sol era possível sentir o calor a pairar no ar, a sombra só nos dava algum alívio para que este não se tornasse insuportável. 
       "Está fantástico Carolina!", disse-me antes de comer mais uma garfada.
       "Calma, ainda há mais", sorri. 
       "Já não comia tão bem à algum tempo!", é um facto.
   Após acabar deixei que o Gonçalo se lambuzasse com a segunda pratada que lhe servira. Por momentos fechei os olhos e apenas senti as pequenas brisas que passavam ocasionalmente. Sentia-me bem ali, naquela casa, naquele jardim, a comer em frente ao rapaz que me encantava mesmo com a boca cheia de molho bechamel. De repente o barulho dos talheres deixou de se ouvir. 
       "Em que estás a pensar?", perguntou ele cortando a minha linha de pensamento.
   Odeio este tipo de jogos, sentia-me vulnerável com ele a avaliar-me, a descobrir o que me vai na mente.
       "Que é bom estar aqui." contigo, quando fazes a minha respiração parar só com um olhar. No fundo disse a verdade.
      "Também gosto que estejas cá", sorriu. Queria acreditar que aquela frase também tinha uma parte ocultada.
       "Hmm, por mim ficava aqui sentada a tarde toda." 
       "Nem penses, temos uma tarde programada." ralhou comigo.
       "Só dizes isso porque não és tu a levantar a mesa." amuei.
       "Temos de ser uns para os outros." disse em tom de gozo.
       "Oh, por favor!", ri-me "Tenta ser mais convincente!"
       "Se eu te explicasse agora quais as razões que me levam a incentivar-te a levantares-te daqui para ires para o meu lado no sofá da sala ias ficar mais do que apenas corada."
   Ouvi bem?! Merda! Merda a dobrar! Reage! As minhas bochechas ardiam-me e queria convencer-me que era apenas do calor.
       "Exactamente.", disse ele vitorioso. Sacana.
   Levantou-se ainda com um sorriso rasgado no rosto e entrou dentro de casa. O que é que acabou de acontecer? Quando decidi agir comecei por arrumar as coisas demoradamente, até lavei a loiça toda que tinha utilizado, mesmo que a máquina de lavar estivesse vazia. Como é que eu ia encará-lo? No final encostei-me ao balcão e ia apertando as mãos, não era altura para ficar nervosa, aliás ele nem disse nada demais. Sabes bem que disse! A minha voz interior estava a matar-me. Estás a parecer uma idiota. Ok, vou lá e pronto, afinal de contas se não pensar nisso acaba por não ter importância. Mal passei a ombreira da porta o seu olhar voou na minha direcção.
      "Estava a ver que nunca mais vinhas." sorriu.
      "Quis deixar tudo limpo, só isso." respondi no momento a seguir, eu sou capaz de jogar este jogo.
       "Senta-te aqui." indicou-me o lugar ao seu lado, ele estava mesmo a provocar-me.
   Assim o fiz, desesperada por não deixar mostrar aquilo que me ia na cabeça.
      "Que filme vamos ver?" perguntei, não queria alongar o silêncio nem dar oportunidades para isso.
       "Um que tinha aí, acho que vais gostar."
   Mexeu no comando e ainda num segundo, acho que o último era o do DVD, e logo o filme começou a dar. Mantive-me com as costas direitas e pus novamente as mãos nos joelhos por não saber o que fazer com elas. Ele olhou-me e já sabia que me estava a avaliar, devia estar a divertir-se imenso com isto ao contrário de mim. Sentia-me cada vez mais desconfortável e não estava a dar a atenção necessária ao filme. Num jeito desajeitado encostei-me ao braço do sofá, finalmente ele desviou o olhar de mim.  Iam ser umas longas duas horas.


   Eram seis horas e meia da tarde quando me estava a preparar para ir embora p'ra casa. Não sei como me haveria de sentir, se contente pelo fantástico dia que se passou ou triste por já ter acabado. Acompanhou-me à porta lentamente com as suas duas amigas fiéis e ficou a olhar-me antes de a abrir. Mais uma vez eu não fazia ideia do que dizer.
       "Obrigado, foste muito paciente hoje.", ele cortou o silêncio e sei que estava a ser sincero.
       "Ainda assim não tens que agradecer.", respondi. "Farias o mesmo por mim." e já fez. 
       "Quero ver-te outra vez esta semana.", mais uma vez deixou-me sem ar.
       "É só dizeres..."
       "Eu sei mas quero que tenhas vontade.", ele está a brincar certo?
       "Isso nunca é o problema." 
       "Então qual é?"
   Começou a sorrir. Olho-lhe nos olhos e começo a achar que faço figura de idiota.
     "Passar tanto tempo sem te ver.", disparei eu e nunca me soubera tão bem. A expressão dele passou de alegre para neutra mais uma vez, baixou o olhar sem me deixar sequer tentar decifrá-lo.
       "Vou certificar-me que isso não acontece.", disse ele.
       "Hmm, vou indo então..."
   Apoiou-se apenas numa muleta e com o outro braço rodeou-me completamente, sentia-me pequena no meio dos seus braços mas ao mesmo tempo segura. Inalei o perfume que já conhecia de cor, só espero que fique nas minhas roupas. Depositou um beijo no topo da minha cabeça e após uns segundos largou-me.
       "Vejo-te amanhã?"
       "Sim." POR FAVOR!, sorri e ele retribuiu.

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