[Gonçalo]
Pisquei os olhos múltiplas vezes até conseguir realmente focar alguma coisa, a claridade que entrava pela janela da divisão queimava-me a cara e senti imediatamente uma dor forte a estourar-me o cérebro. Rolei a cabeça para o lado e ainda ofuscado pela luz da manhã só consegui ver copos por todo o lado, pessoas a dormir nos mais variados sítios e eu a ocupar um sofá castanho que de certeza custara mais do que aquilo que a minha mãe ganha num mês e estava manchado de álcool - sangria, mais precisamente. Bom dia. Peguei no telemóvel e liguei o ecrã: 10h27 da manhã, sem mensagens, sem chamadas. O ambiente estava pesado na casa, para além de cheirar ao tradicional álcool cheirava também a fumo e a vomitado, definitivamente vomitado.
Levantei-me devagar assim que senti o meu corpo pior que o normal, eu já não mancava em vez disso arrastava-me pelas divisões à procura do Bernardo. Não me lembrava de maior parte da noite e quando o tentava fazer sentia que a minha cabeça podia explodir a qualquer momento, retraí-me com a dor e não voltei a tentar tal proeza. Só queria sair daquela casa para o conforto da minha, quanto mais rápido o encontrasse mais rápido tomava um duche, o que iria ajudar a tentar esquecer o que se passara apenas a umas horas atrás. Realizei a árdua tarefa o mais veloz que pude começando pelo piso debaixo sem querer imaginar se tiver que subir todas aquelas escadas se não o encontrar na primeira opção. Felizmente (para mim) defrontei-me com ele nas traseiras, no quintal, deitado numa espreguiçadeira a dormir, desta vez apenas acompanhado por uma bóia. Apetecia-me espancar este caralho por estar pior que eu quando no início da noite combinámos que ele levava o carro no dia seguinte, ou seja, hoje. Mandei-lhe um soco no braço e ele apenas grunhiu e voltou ao sono profundo provocado pela ressaca eminente, pena que hoje não tenho uma réstia de paciência. Peguei num dos braços da espreguiçadeira e puxei-o para cima, consequentemente vi o Bernardo a cair de cara no chão no lado oposto, pelo menos consegui rasgar um pequeno sorriso.
- Fodasse! 'Tás-te a passar?! - Berrou ele, claramente irritado.
- Vamos embora, espero por ti no carro - quando virei costas hesitei e olhei de novo para o corpo que se encontrava agora no chão. - Ou não consegues ir sozinho?
Ele pôs-se de pé e experimentou esforçadamente dar alguns passos, ou algo parecido com isso. Este dia não podia estar a correr melhor. Aproximei-me dele em seu auxilio mas ele resistiu ao meu gesto.
- Vais-te armar em caralho ou vamos sair daqui? - Saiu quase como um berro o que fez a minha cabeça estremecer.
Finalmente rendeu-se e eu pus-me por baixo do seu braço esquerdo, ele pôs o braço à minha volta e agarrou-se o melhor possível a mim. Um gajo de muletas de ressaca a ajudar outro gajo de ressaca pior que ele, não se vê todos os dias.
- As chaves estão dentro de casa, na gaveta do armário da casa de banho - informou ele.
- Nem te vou perguntar o porquê - disse e ele soltou uma gargalhada, demasiado estridente.
Naquela manhã tudo me estava a tirar do sério e quando me dirigi à divisão já me doíam as mãos e sentia-me sem forças, especialmente pela falta de sono. Acendi a luz e haviam pelo menos quatro pessoas espalhadas pelo chão e banheira, contornei-os o melhor que consegui e tirei as chaves da gaveta. Encontrei-me novamente com o Bernardo a meio do corredor e ele passou o braço sobre as minhas costas, mal passamos a porta o ar fresco bateu na nossa cara, o contraste com o ambiente da casa fez-me acalmar o estômago. Esforcei-me ao máximo para a minha condução não parecer um desastre total, doíam-me as pernas - mais do que o costume, sentia-me cansado e estava com uma ressaca de merda para sequer estar a conduzir. Não imaginara que a minha atitude levasse a tais proporções e se a minha mãe soubesse matava-me naquele instante. Rezei mentalmente a Deus para que ela já tivesse saído de casa, só para não me sentir pior por ela me ver naquele estado e ainda nem sequer me ter livrado das muletas ou das lembranças do acidente.
- Vou levar-te para minha casa, a tua mãe não te pode ver nesse estado - informei-o preocupado com o meu parceiro também, mas não obtive resposta. Olhei para ele - estás a ouvir?
- Hun-hun... - grunhiu ele, para mim era resposta suficiente.
Pus um colchão no chão mesmo ao lado da minha cama com um lençol e uma almofada por cima, ele não devia precisar de mais. Ouvi um grunhir de algumas palavras de agradecimento, que estava contente por sermos amigos e mais não percebi, nem tentei, simplesmente deixou-se cair e adormeceu. Dirigi-me à casa de banho e só quando me pus em frente ao espelho enorme posto estrategicamente em cima do lavatório é que enxerguei o meu verdadeiro estado: tinha olheiras do tamanho do mundo carregadas por baixo dos meus olhos raiados de sangue juntamente com as cicatrizes que ainda me marcavam a cara, o meu cabelo estava em completo desalinho e gordurento, nem tentei tocar-lhe, a minha roupa estava amarrotada e maltratada como tivesse vestido qualquer coisa à pressa do cesto da roupa suja e o meu cheiro era o pior de tudo, um misto intenso de suor e álcool, não conseguiria mesmo dormir neste estado. Finalmente entrei na cabine e liguei a água que rapidamente tomou cada centímetro do meu corpo e que bem que sabia. Não podia pensar em mais nada se não naquela sensação relaxante que atravessava todos os meus músculos e consequentemente os fazia relaxar. Demorei-me mais que o habitual mas as dores no corpo e as minhas pernas coxas não me permitiram desfrutar durante muito mais tempo. Após secar o corpo vesti uns boxers e penteei o cabelo molhado com os dedos o melhor que consegui. Já podia ouvir o Bernardo a ressonar e só esperava que ele não me desse mais dores de cabeça, era um estúpido de merda e eu tratei-o mal mas continuava a ser o meu melhor amigo. Olhei para os comprimidos em cima do móvel que tomava regularmente por causa das dores mas hesitei em pegar neles visto que bebi bastante e não sei que consequências isso me traria depois, preferi não arriscar. Abri um pouco a janela não fosse eu sufocar com o cheiro nojento do Bernardo e dirigi-me para a minha adorada cama. Deitei a cabeça na almofada e bastou apenas isso para sentir o cansaço a pesar-me o corpo e as pálpebras e então desejei, por breves momentos mesmo antes de me entregar ao meu inconsciente, em como era bom se ela tivesse ali ao meu lado, logo adormeci.
[Carolina]
Quando acordei do meu sono de vinte minutos a minha cabeça queixava-se do pouco descanso e os meus olhos raiados de sangue e inchados de tanto chorar ofereciam resistência quando os abria. Olhei para o relógio do quarto: 10h27, mais uma noite inteira sem dormir como nos velhos tempos. Levantei a cabeça que estava sobre o ombro da minha mãe e cocei os olhos na esperança de colaborarem comigo, ela ainda dormia profundamente. Passei as mãos pelo pescoço e pelos ombros e estremeci com as dores do desconforto do sofá. Olhei em meu redor, a luz da manhã entrava pelas frinchas da persiana que permanecia meio fechada, o que tornava o ambiente do quarto ainda mais pesado. Olhei para o meu tio que dormia pacificamente na cama mesmo que ironicamente estivesse cercado por vários fios e máquinas, sendo uma delas o oxigénio que o ajudava a respirar. Ao entrar no hospital com os olhos marejados de lágrimas procurei a minha mãe desesperadamente pelos corredores, já não lembro se paguei ao taxista quando saí disparada do veículo, é provável que não, espero poder encontrá-lo novamente para o fazer. Quando encontrei a minha mãe ela estava a chorar numa das cadeiras da sala de espera, os ombros tremiam-lhe freneticamente. Explicou-me por entre soluços que tinha encontrado o Carlos caído no chão da sala de estar com falta de ar, bastante aflito. Nem quero pensar naquele corpo frágil a embater no chão, sem conseguir chamar por ajuda. O pensamento terrível assombrou-me a mente e o coração. Soubemos mais tarde que ele tinha líquido em torno dos pulmões e tiveram que o drenar. O médico que acompanhava o caso foi bastante paciente connosco, assim como as enfermeiras, mas informaram-nos que nesta fase final problemas como este iam surgir eventualmente e tínhamos que estar preparadas para que ele pudesse abandonar este mundo o mais confortável possível. À medida que ele falava eu arrepiava-me e o meu coração pesava ainda mais que antes, mas era notável as alterações físicas que o Carlos sofreu durante este período de tempo e acima de tudo ele mostrava estar mais que preparado para partir, aliás, mais do que nós duas juntas.
Olhei para o telemóvel, o ecrã acendeu e mostrou uma imagem de fundo que era predefinida, para além disso mais nada. Passaram-se precisamente nove horas e não recebi nenhuma chamada ou sequer uma única mensagem. Ao contrário do da minha mãe que não parara de tocar, ligavam para dizer algumas palavras de força e encorajamento ou então eram apenas pessoas curiosas. Sentia-me derrotada, humilhada e cansada. A vida ia caindo gradualmente em cima de mim e eu simplesmente desistira de ripostar. Como é que me fui meter nisto? Eu sei melhor que isto. Eu sei quem ele é, o que ele fez e faz, não havia maneira de ser diferente comigo. Odiava-me por ter posto esperança na pessoa errada, à hora errada, por ter confiado em tudo o que me disse. Ontem pensei que tinha perdido o meu tio, nunca mais o iria ver com a vida a trespassar-lhe as faces, a última vez que o fizera foi à dias, nunca me iria perdoar por isso. Só porque andei demasiado ocupada a viver uma ilusão. Ficava frustrada e magoada ao mesmo tempo, sentia-me usada.
O sofá mexeu-se ao meu lado, a minha mãe tentava espreguiçar-se no espaço reduzido que serviu de nossa cama durante a noite e finalmente abriu os olhos.
- Bom dia.
- Bom dia - respondeu ela, num tom ensonado. - Já estás a pé à muito?
- Nem por isso, acordei mesmo à pouco.
- Hmm... - Sentou-se direita no sofá e também estremeceu de dores no pescoço. -Tens fome? É melhor irmos comer qualquer coisa.
Ela pegou-me na mão antes de eu poder dizer alguma coisa. Os corredores do hospital estavam praticamente vazios o que tornava aquele lugar calmo, tão calmo que chegava a ser desconfortável. A minha mãe encaminhou-me para umas máquinas de comida, mas nada do que eu olhava tinha bom aspecto e de repente, como por vontade própria, o meu estômago rugiu. Ela olhou-me e suspirou.
- Ele tem razão, precisamos de comida a sério.
[Gonçalo]
Acordei sobressaltado com um barulho irritante e logo a seguir ouvi a voz ensonada do Bernardo. Tinham-lhe ligado e pela maneira como ele falava era porque se tratava da mãe, é normal, ele não lhe dera notícias desde ontem à noite e já eram duas e vinte e três da tarde. A minha dor de cabeça já não era tão aguda mas ainda estava presente, os meus olhos já não ardiam tanto e o meu corpo estava mais descansado, sentia-me razoavelmente bem. Tirando uma merda ou outra... Aproveitei para ir à casa de banho aliviar-me e assim que regressei o Bernardo já não estava em chamada.
- Então? - Perguntou o Bernardo enquanto espreitava por cima da minha cama. - Uma noite do caraças!
- Nem me dirijas a palavra, - avisei-o - apetece-me dar-te um soco!
- Ei, porquê?
- Não brinques, mesmo!
- Acalma-te lá, estava com a rapariga tinha que a acompanhar a beber, fico a dever-te uma - respondeu sincero.
- Esta vale por cinco, podia ter estourado a merda do carro!
- Mas não estouraste e nós estamos bem em tua casa, relaxa - disse ele, bastante confiante das suas palavras.
Com um gesto abrupto abri as persianas e deixei a luz do dia cegar-me momentaneamente, sentia-me frustrado de novo com a situação mas ao menos já estava em casa. O meu estômago dava voltas e eu não sabia se me pedia comida ou me pedia para vomitar.
- Já falaste com a Carolina?
Que raio?! Apanhou-me de surpresa - Não, nem vou.
- Porquê?! - Perguntou afectado e chocado.
- Aconteceram imprevistos - disse eu, não queria ir mais longe.
- Não devias estar ao lado dela na mesma?
- São problemas nossos, porquê o súbito interesse? - perguntei com os dentes cerrados e ele apercebeu-se que me irritou. Não lhe contei o que se tinha passado no dia anterior, será que a Carolina falou com ele?
- Por nada, Gonçalo... - disse ele e fez uma pausa longa. - Depois não te arrependas.
- Que queres dizer com isso?
- Sabes muito bem o que quero dizer.
Ele tinha razão e eu anuí, não falei mais sobre o assunto que apareceu sem eu estar à espera. Sentia agora um ardor no peito que se assemelhava a uma faca a perfurar-me lenta e dolorosamente, esta reacção dizia-me que estava ainda magoado com ela. Assim que voltei à lucidez o meu estômago pediu-me para vomitar.
Tinham-se passado cerca de seis dias e, como da última vez, eu não mandei mensagem assim como ela também não. Era uma espera agoniante, por mais ridículo que eu parecesse em ver o meu telemóvel de cinco em cinco minutos eu não ia pôr o meu orgulho de lado, não depois de tudo o que fiz naquele dia.
O Bernardo foi buscar-me de carro e pusemos-nos a caminho da casa da Íris, ela convidou-nos a nós e ao restante grupo para passar lá e não era como se eu tivesse algo melhor para fazer durante toda a tarde. Tinha saído bastantes vezes com eles depois da grande festa e sentia-me bem em ter o meu tempo e a minha cabeça ocupados, de qualquer maneira o grupo era divertido e havia sempre alguma coisa para fazer. Entretanto no carro, o Bernardo ia de olhos postos na estrada enquanto procurava uma estação de rádio que lhe agradasse, ultimamente o ambiente entre nós tem andado um pouco carregado demais mas ambos damos mais importância à nossa longa amizade. De repente parou numa música, Disclosure - You and me, reconheci-a logo.
- Adoro esta música! - exclamou ele enquanto dançava no assento do carro.
Anuí e rasguei um sorriso, acompanhei-lhe os movimentos rapidamente e fomos assim o resto da viagem.
Mal chegamos ao destino o Bernardo tocou à campainha, ouvimos passos do outro lado da porta e de repente esta abriu-se mostrando uma rapariga de estatura média com o cabelo loiro que lhe dava abaixo dos ombros pintado nas pontas em tons de azul claro, mostrava um sorriso de orelha a orelha onde pendia um piercing que estava preso na gengiva superior, nada mais nada menos que a Íris.
- Olá! - Sorriu ainda mais e abriu o resto da porta para nos deixar passar. - Gonçalo, já deixas-te as muletas!
- Finalmente, estava farto.
- Oh, acho que te davam personalidade - disse ela sincera.
Gargalhei, era mesmo uma resposta à medida dela. A Íris era o mais recente membro do nosso grupo, conhecemos-nos todos numa festa e rapidamente fizemos amizade, com ela era bastante fácil. Apesar de parecer um homem em variadas coisas ela era sincera, preocupada, a definição total de alegria e divertimento e punha-nos todos em ordem se fosse preciso.
- Estamos todos na sala, - informou ela - ponham-se à vontade. Volto já!
Entramos na divisão e já haviam cervejas espalhadas em cima de uma mesa de centro acompanhadas por uma tigela cheia de tremoços, quatro rapazes sentados no chão, o Rui, o Rafael, o Freire e o Gaspar concentrados num jogo de playstation e duas raparigas sentadas no sofá que desconheço, provavelmente são amigas da Íris visto que o género de roupa que usam é semelhante. Ninguém reparou em nós a entrar, estavam todos demasiado focados no ecrã do plasma. A Íris apareceu atrás de nós com quatro cervejas na mão e rapidamente fez um ar aborrecido. Passou-me as cervejas e dirigiu-se ao plasma carregando no botão que o desligava, quando o televisor ficou completamente preto ouviram-se protestos já esperados.
- Então?! Que estás a fazer? - Perguntou chateado o Rafael.
- Estávamos a ganhar! - Disse o Gaspar indignado.
- Chegou gente, ninguém reparou?
- Eles podem-se juntar a nós, não era preciso parar o jogo - disse o Rafael, referindo-se a nós, aborrecido.
- As cervejas acabaram, só sobram aquelas quatro - informou ela e apontou para as minhas mãos.
- Vai buscar mais - disse o Freire, ele não devia ter dito aquilo.
- Quê?! Tenho cara de tua empregada?! Ou as mulheres só servem para isso?! - Respondeu chateada. Esqueci-me de referir que a Íris era uma defensora das mulheres, orgulhava-se de ser uma e odiava comentários ou ideais antiquados, era uma causa que defendia com unhas e dentes. O Freire nem respondeu, sabia que não ia querer meter-se neste 'debate', especialmente com ela. - Arranjem-se, alguém vai ter que ir buscar mais ao supermercado!
- Eu posso ir - disse.
- Acabaste de chegar, Gonçalo!
- Sim, mas agora que não tenho as muletas queria aproveitar.
- Eu vou contigo - disse o Rafael. - Visto que já ganhei o jogo e já - gargalhou.
- Tens a certeza, Gonçalo? - Perguntou ela de novo, preocupada.
- Sim, a sério, estou a precisar.
- Muito bem, dêem a vossa parte - disse ela falando para todos.
Depois de termos o dinheiro reunido fizemos-nos ao caminho, sentia-me muito melhor por já não ter as muletas a impedirem-me de ir a algum lado.
- Aquela miúda é única - disse o Rafael a rir-se.
- Se pudesse tinha dado um soco ao Freire - ri-me mais.
- Merecia de qualquer das maneiras.
- Quem eram as raparigas no sofá a olhar pra vocês como se fossem comida? - Perguntei com curiosidade a mais.
- Ah, elas? Umas amigas da Íris, muito fixes também, - disse descontraído - a morena é a Safira e a outra loira a Rebecca, acho que essa não é portuguesa.
- Safira?
- Sim, pelo que disse é o último nome, interessante não é?
- Estranho como o caralho.
Rapidamente chegamos ao supermercado, ficava a cerca de cinco minutos de casa da Íris, era conveniente ficar tão perto. Eu e o Rafa separamos-nos, eu fui em direcção às cervejas e ele aos salgadinhos. Mal pus todas as caixas que precisava dentro do carrinho fui dirigindo-me até ao fundo do corredor para ver se encontrava o meu parceiro, andava distraído a ver as prateleiras e ao dobrar a esquina senti algo a chocar contra o carrinho, uma pessoa.
- Raios! Está tudo bem? - Perguntei sem perceber o que tinha acontecido.
- Sim, se não tivesses vindo contra mim - respondeu ela.
Fodasse, era a Carolina. - Ah, és tu - és tu? Estou feito.
- Hmm, parece que sim - disse ela desconfortável e eu anuí. - Então, uma festa? - Perguntou apontando para o meu carrinho.
- Não, fomos só até a casa da Íris.
- Ah... Já não tens muletas também - reparou ela.
- Não, já não ando com elas desde ontem - respondi secamente. - E tu, como tens estado?
- A sério? - Perguntou e eu fiz cara de desentendido. - Não tens melhor que isso?
- Melhor, Carolina? - Perguntei a ficar chateado. - O melhor era alguém ter-se preocupado - disse entre dentes.
- E dizes isso a mim? És tão egocêntrico a ponto disso?
- Tu não quiseste saber de mim, Carolina! - Elevei a voz sem reparar.
- Sabes que mais, Gonçalo? Esquece, a sério, esquece mesmo! Nem precisas mais de te incomodar com a minha vida enfadonha, é demais para ti! Ainda bem que já andas a divertir-te! - Disse ela no momento em que chegou o Rafa.
- 'Tas pronto? Já tenho a comida - informou-me e reparou na Carolina a seguir. - Olá? Hmm, estou a mais? - Perguntou receoso.
- Não, de qualquer das maneiras já me ia embora - disse ela e virou costas.
- Vais indo para a caixa? - Perguntei ao Rafa e virei costas também para ir atrás dela, nem esperei resposta.
Ela pousou as coisas dela numa prateleira qualquer e saiu disparada do supermercado, segui-a para o parque de estacionamento e puxei-lhe um braço.
- Que queres, Gonçalo?
- Porquê que estás com uma atitude de cabra quando tu é que não me mandas-te mensagem nem ligas-te depois do que eu fiz para ti?!
- O que é que fizeste para mim, Gonçalo? Um piquenique? E depois? É razão suficiente para me deixares pendurada? - Perguntou acusando-me.
- Pendurada, Carolina? - Perguntei sem saber a que ela se estava a referir, ela tinha fumado?
- Claro, é melhor fazeres-te desentendido, não é? Para mim chega de jogos contigo! Tenho pessoas que merecem mais a minha atenção!
- Desentendido de quê? Para mim não foram jogos!
- Não te lembras?! Estavas assim tão bêbado na merdinha da tua festa?! Raios, sou tão estúpida!
- De quê que estás a falar, Carolina?! - Perguntei claramente irritado e ela percebeu.
- Da merda da mensagem que me mandaste! Disseste que vinhas ter comigo! Esperei por ti uma hora inteira com a merda de um lanche para nós! Depois, como se não chegasse a minha figura de otária, o meu tio foi parar ao hospital e tu nem o telemóvel me atendeste! Liguei-te cinco vezes em total desespero! Estás a entender agora do que estou a falar?! - Perguntou com os olhos marejados de lágrimas e mordeu o lábio inferior.
- Ahn?! Eu não te mandei mensagem nenhuma Carolina, nem sequer recebi uma única chamada tua essa noite, estava a dar em doido!
- Estás a mentir-me?! Depois de eu receber as mensagens ainda me mentes?! - Uma lágrima já lhe rolava na bochecha e eu resisti à tentação de a limpar.
- Não estou, eu juro!
- Não sou as tuas amigas, Gonçalo, para tu poderes brincar quando quiseres e bem entenderes, estou farta de ser esse tipo de miúda para ti - disse derrotada. - Nunca pensei que fosses capaz disso, especialmente...
- Especialmente?
- Comigo, Gonçalo. Mas só me engano a mim mesma.
- Espera e o teu tio? Como está ele?
- A morrer, Gonçalo - disse friamente - Aliás, já pode ter morrido neste preciso momento e eu aqui, sem saber.
Aquelas palavras apertaram-me o coração - Vais para casa dele?
- Que te interessa?
- Anda, eu levo-te.
- Não quero e aliás, tens uma festa para ir.
- Não é uma festa - disse entre dentes. - Nem que te arraste, Carolina. Nem que me batas, insultes ou me dês o tratamento do silêncio, vou levar-te.
Ela pareceu hesitar e desconfiar de mim, apesar disso me magoar ela seguiu-me e o Rafa acabou por sair do supermercado. Acabamos por ir os três para casa da Íris e ninguém falou no caminho visto que havia muito constrangimento no ar, ainda bem que era perto.
Entramos na casa e toda a gente gargalhava e falava alto ao mesmo tempo, o Rafa levou a comida para a cozinha e começou a pôr as cervejas no frigorífico. Eu e a Carolina ficamos parados na entrada da sala.
- Hmm, Bernardo?
Toda a gente ouviu e olhou para nós, admirados por eu a ter levado lá, a Íris interveio logo.
- Oh, Gonçalo! Esta é que é a Carolina? - sorriu.
- Hmm, sim.
Ela levantou-se graciosamente e foi na direcção dela. - Olá, Carolina! Tão bom conhecer-te! - Afirmou e abraçou-a sem esta estar à espera, típico da Íris.
- Ah, a ti também! Obrigado? - Disse confusa. - Íris, não é?
- Sim! Adoro que tenham vindo juntos! Não estávamos a contar contigo mas há comida suficiente para todos - disse ela carinhosamente.
- Não é preciso, nós já vamos embora, só vinha pedir o carro ao Bernardo - disse rapidamente.
- Porquê? - Perguntou a Íris triste.
- Tem mesmo que ser - disse e fiz-lhe um olhar para ela parar, ela entendeu.
- Emprestas, Bernardo? Depois venho-to trazer.
- Claro, sim - disse ele ainda especado. - As chaves estão à entrada.
- Obrigado - agradeci. - Vamos indo então, até já!
Despedimos-nos o mais rápido possível e entramos no carro, ela não falava para mim. Meti as chaves na ignição e rodei-as, o carro começou a trabalhar e fomos a caminho da casa do seu tio. De repente a música que eu e o Bernardo gostávamos começou a dar e eu sorrir ao pensar na viagem que fizemos mais cedo naquele dia.
- A situação tem graça? - Balbuciou ela, quase num sussurro.
- Não me estava a rir da situação - esclareci.
- Claro...
- Estás a ser injusta comigo.
- Larga o assunto, Gonçalo - avisou ela.
- Eu não te mandei mensagens nenhumas, achas que depois do dia que passamos te ia fazer isso?
- Não fiquei admirada.
Bufei. - Preparei-te um dia fantástico que nunca o fiz com mais ninguém, estava de muletas e mesmo assim quis fazê-lo para ti e tu nem tiveste a coragem para me mandar a merda de uma mensagem a agradecer?!
- Sim, Gonçalo! Como tu me agradeceste por me ter entregado a ti?!
- Que tem isso sequer a ver?!
- Foi a primeira vez que me entreguei a alguém e tu apenas dizes 'Obrigado Carolina, tu sabes'?!
- Que querias que eu dissesse?! Não foi nada demais! - Saiu da minha boca antes que o pudesse evitar, fodasse!
- Quê?! - Ela olhou-me horrorificada, com razão. - Não sou as putas com quem tu costumas estar! Peço imensa desculpa se para ti já não tem significado nenhum, já que és tão rodado e rodas toda a gente! - Berrou.
- Tu deixaste Carolina, lembras-te?! Eu não me aproveitei de ti!
- É o que significa para ti?! Por eu ter dito que deixava?! - Lágrimas começaram a palpitar dos olhos dela. - Oh meu deus... Que burra! - Exclamou escandalizada.
- Sabes bem que não quis dizer isso! - Disse extremamente irritado, as minhas mãos estavam agora brancas de agarrar o volante com força.
- Então o que quiseste dizer Gonçalo?! O que é que quiseste?! O que queres de mim?!
- Eu... Eu só...
- Chega, Gonçalo! Chega de mentiras! [soluço] Não posso mais com isto! Não mudaste nem nunca o vais fazer! [soluço] Vais acabar sozinho! [soluço] - Atirou-me à cara com toda a raiva possível.
- Fodasse! É assim tão difícil de acreditar em mim?! Posso ser a pior merda do mundo mas sempre fui honesto contigo!
- Então como é que as mensagens apareceram no meu telemóvel?!
- Não sei, Carolina! Eu juro que não sei! Juro pela minha mãe!
- Não jures, a tua mãe é boa demais!
- Caralho, acredita-te em mim! Aliás, eu perdi o telemóvel no meio da festa!
- Que conveniente... - Disse ela sarcasticamente.
- Pergunta à Íris, ela sabe! Eu não te estou a mentir!
- Eu não preciso de perguntar nada a ninguém, precisei de ti, eu liguei-te em desespero e tu não me atendeste. Sabes qual é a sensação de não saberes se alguém importante para ti morreu ao não? Porque eu passei por isso, já duas vezes.
- Carolina, eu não recebi nada, juro. Eu não te ignorei, não consigo ser mais sincero.
- Gonçalo, esquece isto, se é que alguma vez tu quiseste saber - disse ela honestamente. - Não quero viver em dramas e o meu tio precisa de toda a minha atenção.
- Carolina, eu faço qualquer coisa...
- Deixa-me ir então.
Aquelas palavras acertaram-me em cheio no peito e a faca que lá estava antes ficou em chamas queimando tudo o que tocava. Reprimi as minhas lágrimas e comprimi os lábios para não dizer mais nada. Logo chegámos a casa do Carlos e está igual ao que me lembro, tinha saudades dos tempos que passei lá e principalmente do jardim das traseiras. Respirava depressa e profundamente enquanto ela ficou parada a olhar para o nada com lágrimas a secarem nas suas bochechas. Tirou o cinto e passou a manga da camisola pela cara, abriu a boca para dizer alguma coisa mas nenhum som saiu da mesma, agarrou a maçaneta da porta e esperou, talvez que eu dissesse alguma coisa.
- Sinto muito, diz-lhe um olá por mim.
Mal as palavras saíram-me da boca novas lágrimas ameaçaram cair dos olhos dela e então ela saiu do carro, bateu a porta e virou costas.
- Olha para mim, por favor, só um olhar - proferi quase num sussurro desesperado.
Mas ela não olhou, abriu a porta da frente da casa e entrou, ela seguiu em frente sem olhar para trás.
[Carolina]
Quando acordei do meu sono de vinte minutos a minha cabeça queixava-se do pouco descanso e os meus olhos raiados de sangue e inchados de tanto chorar ofereciam resistência quando os abria. Olhei para o relógio do quarto: 10h27, mais uma noite inteira sem dormir como nos velhos tempos. Levantei a cabeça que estava sobre o ombro da minha mãe e cocei os olhos na esperança de colaborarem comigo, ela ainda dormia profundamente. Passei as mãos pelo pescoço e pelos ombros e estremeci com as dores do desconforto do sofá. Olhei em meu redor, a luz da manhã entrava pelas frinchas da persiana que permanecia meio fechada, o que tornava o ambiente do quarto ainda mais pesado. Olhei para o meu tio que dormia pacificamente na cama mesmo que ironicamente estivesse cercado por vários fios e máquinas, sendo uma delas o oxigénio que o ajudava a respirar. Ao entrar no hospital com os olhos marejados de lágrimas procurei a minha mãe desesperadamente pelos corredores, já não lembro se paguei ao taxista quando saí disparada do veículo, é provável que não, espero poder encontrá-lo novamente para o fazer. Quando encontrei a minha mãe ela estava a chorar numa das cadeiras da sala de espera, os ombros tremiam-lhe freneticamente. Explicou-me por entre soluços que tinha encontrado o Carlos caído no chão da sala de estar com falta de ar, bastante aflito. Nem quero pensar naquele corpo frágil a embater no chão, sem conseguir chamar por ajuda. O pensamento terrível assombrou-me a mente e o coração. Soubemos mais tarde que ele tinha líquido em torno dos pulmões e tiveram que o drenar. O médico que acompanhava o caso foi bastante paciente connosco, assim como as enfermeiras, mas informaram-nos que nesta fase final problemas como este iam surgir eventualmente e tínhamos que estar preparadas para que ele pudesse abandonar este mundo o mais confortável possível. À medida que ele falava eu arrepiava-me e o meu coração pesava ainda mais que antes, mas era notável as alterações físicas que o Carlos sofreu durante este período de tempo e acima de tudo ele mostrava estar mais que preparado para partir, aliás, mais do que nós duas juntas.
Olhei para o telemóvel, o ecrã acendeu e mostrou uma imagem de fundo que era predefinida, para além disso mais nada. Passaram-se precisamente nove horas e não recebi nenhuma chamada ou sequer uma única mensagem. Ao contrário do da minha mãe que não parara de tocar, ligavam para dizer algumas palavras de força e encorajamento ou então eram apenas pessoas curiosas. Sentia-me derrotada, humilhada e cansada. A vida ia caindo gradualmente em cima de mim e eu simplesmente desistira de ripostar. Como é que me fui meter nisto? Eu sei melhor que isto. Eu sei quem ele é, o que ele fez e faz, não havia maneira de ser diferente comigo. Odiava-me por ter posto esperança na pessoa errada, à hora errada, por ter confiado em tudo o que me disse. Ontem pensei que tinha perdido o meu tio, nunca mais o iria ver com a vida a trespassar-lhe as faces, a última vez que o fizera foi à dias, nunca me iria perdoar por isso. Só porque andei demasiado ocupada a viver uma ilusão. Ficava frustrada e magoada ao mesmo tempo, sentia-me usada.
O sofá mexeu-se ao meu lado, a minha mãe tentava espreguiçar-se no espaço reduzido que serviu de nossa cama durante a noite e finalmente abriu os olhos.
- Bom dia.
- Bom dia - respondeu ela, num tom ensonado. - Já estás a pé à muito?
- Nem por isso, acordei mesmo à pouco.
- Hmm... - Sentou-se direita no sofá e também estremeceu de dores no pescoço. -Tens fome? É melhor irmos comer qualquer coisa.
Ela pegou-me na mão antes de eu poder dizer alguma coisa. Os corredores do hospital estavam praticamente vazios o que tornava aquele lugar calmo, tão calmo que chegava a ser desconfortável. A minha mãe encaminhou-me para umas máquinas de comida, mas nada do que eu olhava tinha bom aspecto e de repente, como por vontade própria, o meu estômago rugiu. Ela olhou-me e suspirou.
- Ele tem razão, precisamos de comida a sério.
[Gonçalo]
Acordei sobressaltado com um barulho irritante e logo a seguir ouvi a voz ensonada do Bernardo. Tinham-lhe ligado e pela maneira como ele falava era porque se tratava da mãe, é normal, ele não lhe dera notícias desde ontem à noite e já eram duas e vinte e três da tarde. A minha dor de cabeça já não era tão aguda mas ainda estava presente, os meus olhos já não ardiam tanto e o meu corpo estava mais descansado, sentia-me razoavelmente bem. Tirando uma merda ou outra... Aproveitei para ir à casa de banho aliviar-me e assim que regressei o Bernardo já não estava em chamada.
- Então? - Perguntou o Bernardo enquanto espreitava por cima da minha cama. - Uma noite do caraças!
- Nem me dirijas a palavra, - avisei-o - apetece-me dar-te um soco!
- Ei, porquê?
- Não brinques, mesmo!
- Acalma-te lá, estava com a rapariga tinha que a acompanhar a beber, fico a dever-te uma - respondeu sincero.
- Esta vale por cinco, podia ter estourado a merda do carro!
- Mas não estouraste e nós estamos bem em tua casa, relaxa - disse ele, bastante confiante das suas palavras.
Com um gesto abrupto abri as persianas e deixei a luz do dia cegar-me momentaneamente, sentia-me frustrado de novo com a situação mas ao menos já estava em casa. O meu estômago dava voltas e eu não sabia se me pedia comida ou me pedia para vomitar.
- Já falaste com a Carolina?
Que raio?! Apanhou-me de surpresa - Não, nem vou.
- Porquê?! - Perguntou afectado e chocado.
- Aconteceram imprevistos - disse eu, não queria ir mais longe.
- Não devias estar ao lado dela na mesma?
- São problemas nossos, porquê o súbito interesse? - perguntei com os dentes cerrados e ele apercebeu-se que me irritou. Não lhe contei o que se tinha passado no dia anterior, será que a Carolina falou com ele?
- Por nada, Gonçalo... - disse ele e fez uma pausa longa. - Depois não te arrependas.
- Que queres dizer com isso?
- Sabes muito bem o que quero dizer.
Ele tinha razão e eu anuí, não falei mais sobre o assunto que apareceu sem eu estar à espera. Sentia agora um ardor no peito que se assemelhava a uma faca a perfurar-me lenta e dolorosamente, esta reacção dizia-me que estava ainda magoado com ela. Assim que voltei à lucidez o meu estômago pediu-me para vomitar.
O Bernardo foi buscar-me de carro e pusemos-nos a caminho da casa da Íris, ela convidou-nos a nós e ao restante grupo para passar lá e não era como se eu tivesse algo melhor para fazer durante toda a tarde. Tinha saído bastantes vezes com eles depois da grande festa e sentia-me bem em ter o meu tempo e a minha cabeça ocupados, de qualquer maneira o grupo era divertido e havia sempre alguma coisa para fazer. Entretanto no carro, o Bernardo ia de olhos postos na estrada enquanto procurava uma estação de rádio que lhe agradasse, ultimamente o ambiente entre nós tem andado um pouco carregado demais mas ambos damos mais importância à nossa longa amizade. De repente parou numa música, Disclosure - You and me, reconheci-a logo.
- Adoro esta música! - exclamou ele enquanto dançava no assento do carro.
Anuí e rasguei um sorriso, acompanhei-lhe os movimentos rapidamente e fomos assim o resto da viagem.
Mal chegamos ao destino o Bernardo tocou à campainha, ouvimos passos do outro lado da porta e de repente esta abriu-se mostrando uma rapariga de estatura média com o cabelo loiro que lhe dava abaixo dos ombros pintado nas pontas em tons de azul claro, mostrava um sorriso de orelha a orelha onde pendia um piercing que estava preso na gengiva superior, nada mais nada menos que a Íris.
- Olá! - Sorriu ainda mais e abriu o resto da porta para nos deixar passar. - Gonçalo, já deixas-te as muletas!
- Finalmente, estava farto.
- Oh, acho que te davam personalidade - disse ela sincera.
Gargalhei, era mesmo uma resposta à medida dela. A Íris era o mais recente membro do nosso grupo, conhecemos-nos todos numa festa e rapidamente fizemos amizade, com ela era bastante fácil. Apesar de parecer um homem em variadas coisas ela era sincera, preocupada, a definição total de alegria e divertimento e punha-nos todos em ordem se fosse preciso.
- Estamos todos na sala, - informou ela - ponham-se à vontade. Volto já!
Entramos na divisão e já haviam cervejas espalhadas em cima de uma mesa de centro acompanhadas por uma tigela cheia de tremoços, quatro rapazes sentados no chão, o Rui, o Rafael, o Freire e o Gaspar concentrados num jogo de playstation e duas raparigas sentadas no sofá que desconheço, provavelmente são amigas da Íris visto que o género de roupa que usam é semelhante. Ninguém reparou em nós a entrar, estavam todos demasiado focados no ecrã do plasma. A Íris apareceu atrás de nós com quatro cervejas na mão e rapidamente fez um ar aborrecido. Passou-me as cervejas e dirigiu-se ao plasma carregando no botão que o desligava, quando o televisor ficou completamente preto ouviram-se protestos já esperados.
- Então?! Que estás a fazer? - Perguntou chateado o Rafael.
- Estávamos a ganhar! - Disse o Gaspar indignado.
- Chegou gente, ninguém reparou?
- Eles podem-se juntar a nós, não era preciso parar o jogo - disse o Rafael, referindo-se a nós, aborrecido.
- As cervejas acabaram, só sobram aquelas quatro - informou ela e apontou para as minhas mãos.
- Vai buscar mais - disse o Freire, ele não devia ter dito aquilo.
- Quê?! Tenho cara de tua empregada?! Ou as mulheres só servem para isso?! - Respondeu chateada. Esqueci-me de referir que a Íris era uma defensora das mulheres, orgulhava-se de ser uma e odiava comentários ou ideais antiquados, era uma causa que defendia com unhas e dentes. O Freire nem respondeu, sabia que não ia querer meter-se neste 'debate', especialmente com ela. - Arranjem-se, alguém vai ter que ir buscar mais ao supermercado!
- Eu posso ir - disse.
- Acabaste de chegar, Gonçalo!
- Sim, mas agora que não tenho as muletas queria aproveitar.
- Eu vou contigo - disse o Rafael. - Visto que já ganhei o jogo e já - gargalhou.
- Tens a certeza, Gonçalo? - Perguntou ela de novo, preocupada.
- Sim, a sério, estou a precisar.
- Muito bem, dêem a vossa parte - disse ela falando para todos.
Depois de termos o dinheiro reunido fizemos-nos ao caminho, sentia-me muito melhor por já não ter as muletas a impedirem-me de ir a algum lado.
- Aquela miúda é única - disse o Rafael a rir-se.
- Se pudesse tinha dado um soco ao Freire - ri-me mais.
- Merecia de qualquer das maneiras.
- Quem eram as raparigas no sofá a olhar pra vocês como se fossem comida? - Perguntei com curiosidade a mais.
- Ah, elas? Umas amigas da Íris, muito fixes também, - disse descontraído - a morena é a Safira e a outra loira a Rebecca, acho que essa não é portuguesa.
- Safira?
- Sim, pelo que disse é o último nome, interessante não é?
- Estranho como o caralho.
Rapidamente chegamos ao supermercado, ficava a cerca de cinco minutos de casa da Íris, era conveniente ficar tão perto. Eu e o Rafa separamos-nos, eu fui em direcção às cervejas e ele aos salgadinhos. Mal pus todas as caixas que precisava dentro do carrinho fui dirigindo-me até ao fundo do corredor para ver se encontrava o meu parceiro, andava distraído a ver as prateleiras e ao dobrar a esquina senti algo a chocar contra o carrinho, uma pessoa.
- Raios! Está tudo bem? - Perguntei sem perceber o que tinha acontecido.
- Sim, se não tivesses vindo contra mim - respondeu ela.
Fodasse, era a Carolina. - Ah, és tu - és tu? Estou feito.
- Hmm, parece que sim - disse ela desconfortável e eu anuí. - Então, uma festa? - Perguntou apontando para o meu carrinho.
- Não, fomos só até a casa da Íris.
- Ah... Já não tens muletas também - reparou ela.
- Não, já não ando com elas desde ontem - respondi secamente. - E tu, como tens estado?
- A sério? - Perguntou e eu fiz cara de desentendido. - Não tens melhor que isso?
- Melhor, Carolina? - Perguntei a ficar chateado. - O melhor era alguém ter-se preocupado - disse entre dentes.
- E dizes isso a mim? És tão egocêntrico a ponto disso?
- Tu não quiseste saber de mim, Carolina! - Elevei a voz sem reparar.
- Sabes que mais, Gonçalo? Esquece, a sério, esquece mesmo! Nem precisas mais de te incomodar com a minha vida enfadonha, é demais para ti! Ainda bem que já andas a divertir-te! - Disse ela no momento em que chegou o Rafa.
- 'Tas pronto? Já tenho a comida - informou-me e reparou na Carolina a seguir. - Olá? Hmm, estou a mais? - Perguntou receoso.
- Não, de qualquer das maneiras já me ia embora - disse ela e virou costas.
- Vais indo para a caixa? - Perguntei ao Rafa e virei costas também para ir atrás dela, nem esperei resposta.
Ela pousou as coisas dela numa prateleira qualquer e saiu disparada do supermercado, segui-a para o parque de estacionamento e puxei-lhe um braço.
- Que queres, Gonçalo?
- Porquê que estás com uma atitude de cabra quando tu é que não me mandas-te mensagem nem ligas-te depois do que eu fiz para ti?!
- O que é que fizeste para mim, Gonçalo? Um piquenique? E depois? É razão suficiente para me deixares pendurada? - Perguntou acusando-me.
- Pendurada, Carolina? - Perguntei sem saber a que ela se estava a referir, ela tinha fumado?
- Claro, é melhor fazeres-te desentendido, não é? Para mim chega de jogos contigo! Tenho pessoas que merecem mais a minha atenção!
- Desentendido de quê? Para mim não foram jogos!
- Não te lembras?! Estavas assim tão bêbado na merdinha da tua festa?! Raios, sou tão estúpida!
- De quê que estás a falar, Carolina?! - Perguntei claramente irritado e ela percebeu.
- Da merda da mensagem que me mandaste! Disseste que vinhas ter comigo! Esperei por ti uma hora inteira com a merda de um lanche para nós! Depois, como se não chegasse a minha figura de otária, o meu tio foi parar ao hospital e tu nem o telemóvel me atendeste! Liguei-te cinco vezes em total desespero! Estás a entender agora do que estou a falar?! - Perguntou com os olhos marejados de lágrimas e mordeu o lábio inferior.
- Ahn?! Eu não te mandei mensagem nenhuma Carolina, nem sequer recebi uma única chamada tua essa noite, estava a dar em doido!
- Estás a mentir-me?! Depois de eu receber as mensagens ainda me mentes?! - Uma lágrima já lhe rolava na bochecha e eu resisti à tentação de a limpar.
- Não estou, eu juro!
- Não sou as tuas amigas, Gonçalo, para tu poderes brincar quando quiseres e bem entenderes, estou farta de ser esse tipo de miúda para ti - disse derrotada. - Nunca pensei que fosses capaz disso, especialmente...
- Especialmente?
- Comigo, Gonçalo. Mas só me engano a mim mesma.
- Espera e o teu tio? Como está ele?
- A morrer, Gonçalo - disse friamente - Aliás, já pode ter morrido neste preciso momento e eu aqui, sem saber.
Aquelas palavras apertaram-me o coração - Vais para casa dele?
- Que te interessa?
- Anda, eu levo-te.
- Não quero e aliás, tens uma festa para ir.
- Não é uma festa - disse entre dentes. - Nem que te arraste, Carolina. Nem que me batas, insultes ou me dês o tratamento do silêncio, vou levar-te.
Ela pareceu hesitar e desconfiar de mim, apesar disso me magoar ela seguiu-me e o Rafa acabou por sair do supermercado. Acabamos por ir os três para casa da Íris e ninguém falou no caminho visto que havia muito constrangimento no ar, ainda bem que era perto.
Entramos na casa e toda a gente gargalhava e falava alto ao mesmo tempo, o Rafa levou a comida para a cozinha e começou a pôr as cervejas no frigorífico. Eu e a Carolina ficamos parados na entrada da sala.
- Hmm, Bernardo?
Toda a gente ouviu e olhou para nós, admirados por eu a ter levado lá, a Íris interveio logo.
- Oh, Gonçalo! Esta é que é a Carolina? - sorriu.
- Hmm, sim.
Ela levantou-se graciosamente e foi na direcção dela. - Olá, Carolina! Tão bom conhecer-te! - Afirmou e abraçou-a sem esta estar à espera, típico da Íris.
- Ah, a ti também! Obrigado? - Disse confusa. - Íris, não é?
- Sim! Adoro que tenham vindo juntos! Não estávamos a contar contigo mas há comida suficiente para todos - disse ela carinhosamente.
- Não é preciso, nós já vamos embora, só vinha pedir o carro ao Bernardo - disse rapidamente.
- Porquê? - Perguntou a Íris triste.
- Tem mesmo que ser - disse e fiz-lhe um olhar para ela parar, ela entendeu.
- Emprestas, Bernardo? Depois venho-to trazer.
- Claro, sim - disse ele ainda especado. - As chaves estão à entrada.
- Obrigado - agradeci. - Vamos indo então, até já!
Despedimos-nos o mais rápido possível e entramos no carro, ela não falava para mim. Meti as chaves na ignição e rodei-as, o carro começou a trabalhar e fomos a caminho da casa do seu tio. De repente a música que eu e o Bernardo gostávamos começou a dar e eu sorrir ao pensar na viagem que fizemos mais cedo naquele dia.
- A situação tem graça? - Balbuciou ela, quase num sussurro.
- Não me estava a rir da situação - esclareci.
- Claro...
- Estás a ser injusta comigo.
- Larga o assunto, Gonçalo - avisou ela.
- Eu não te mandei mensagens nenhumas, achas que depois do dia que passamos te ia fazer isso?
- Não fiquei admirada.
Bufei. - Preparei-te um dia fantástico que nunca o fiz com mais ninguém, estava de muletas e mesmo assim quis fazê-lo para ti e tu nem tiveste a coragem para me mandar a merda de uma mensagem a agradecer?!
- Sim, Gonçalo! Como tu me agradeceste por me ter entregado a ti?!
- Que tem isso sequer a ver?!
- Foi a primeira vez que me entreguei a alguém e tu apenas dizes 'Obrigado Carolina, tu sabes'?!
- Que querias que eu dissesse?! Não foi nada demais! - Saiu da minha boca antes que o pudesse evitar, fodasse!
- Quê?! - Ela olhou-me horrorificada, com razão. - Não sou as putas com quem tu costumas estar! Peço imensa desculpa se para ti já não tem significado nenhum, já que és tão rodado e rodas toda a gente! - Berrou.
- Tu deixaste Carolina, lembras-te?! Eu não me aproveitei de ti!
- É o que significa para ti?! Por eu ter dito que deixava?! - Lágrimas começaram a palpitar dos olhos dela. - Oh meu deus... Que burra! - Exclamou escandalizada.
- Sabes bem que não quis dizer isso! - Disse extremamente irritado, as minhas mãos estavam agora brancas de agarrar o volante com força.
- Então o que quiseste dizer Gonçalo?! O que é que quiseste?! O que queres de mim?!
- Eu... Eu só...
- Chega, Gonçalo! Chega de mentiras! [soluço] Não posso mais com isto! Não mudaste nem nunca o vais fazer! [soluço] Vais acabar sozinho! [soluço] - Atirou-me à cara com toda a raiva possível.
- Fodasse! É assim tão difícil de acreditar em mim?! Posso ser a pior merda do mundo mas sempre fui honesto contigo!
- Então como é que as mensagens apareceram no meu telemóvel?!
- Não sei, Carolina! Eu juro que não sei! Juro pela minha mãe!
- Não jures, a tua mãe é boa demais!
- Caralho, acredita-te em mim! Aliás, eu perdi o telemóvel no meio da festa!
- Que conveniente... - Disse ela sarcasticamente.
- Pergunta à Íris, ela sabe! Eu não te estou a mentir!
- Eu não preciso de perguntar nada a ninguém, precisei de ti, eu liguei-te em desespero e tu não me atendeste. Sabes qual é a sensação de não saberes se alguém importante para ti morreu ao não? Porque eu passei por isso, já duas vezes.
- Carolina, eu não recebi nada, juro. Eu não te ignorei, não consigo ser mais sincero.
- Gonçalo, esquece isto, se é que alguma vez tu quiseste saber - disse ela honestamente. - Não quero viver em dramas e o meu tio precisa de toda a minha atenção.
- Carolina, eu faço qualquer coisa...
- Deixa-me ir então.
Aquelas palavras acertaram-me em cheio no peito e a faca que lá estava antes ficou em chamas queimando tudo o que tocava. Reprimi as minhas lágrimas e comprimi os lábios para não dizer mais nada. Logo chegámos a casa do Carlos e está igual ao que me lembro, tinha saudades dos tempos que passei lá e principalmente do jardim das traseiras. Respirava depressa e profundamente enquanto ela ficou parada a olhar para o nada com lágrimas a secarem nas suas bochechas. Tirou o cinto e passou a manga da camisola pela cara, abriu a boca para dizer alguma coisa mas nenhum som saiu da mesma, agarrou a maçaneta da porta e esperou, talvez que eu dissesse alguma coisa.
- Sinto muito, diz-lhe um olá por mim.
Mal as palavras saíram-me da boca novas lágrimas ameaçaram cair dos olhos dela e então ela saiu do carro, bateu a porta e virou costas.
- Olha para mim, por favor, só um olhar - proferi quase num sussurro desesperado.
Mas ela não olhou, abriu a porta da frente da casa e entrou, ela seguiu em frente sem olhar para trás.
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